“É o lugar mais lindo do mundo”, declara Dona Ivoneide (60), guardiã da memória da comunidade, olhando em volta para as crianças que correm pelo Pavilhão Atlântico, espaço de encontro e lazer da comunidade Poço da Draga. “Eu nasci no Poço, eu moro no Poço, eu não quero sair do Poço. A gente briga muito [para permanecer], a gente é um lugar de resistência. E agora a resistência vai aumentar mais ainda”, completa, com orgulho.
O Poço da Draga é uma comunidade tradicional de Fortaleza, localizada na interseção das Avenidas Pessoa Anta e Almirante Tamandaré, na Praia de Iracema. Com mais de um século de história, memórias e luta por permanência, a comunidade foi fundada em 1906, quando pescadores, portuários e suas famílias se estabeleceram à beira-mar, junto ao primeiro desembarcadouro da capital da Terra da Luz. Desde então, resiste.
“Eu sabia que a ponte tinha sido um porto, mas não sabia que ao redor existiam casas. Que as pessoas que moravam aqui eram pescadores que viviam da praia. Isso foi revelador pra mim”, conta Amanda da Silva (25), bolsista-pesquisadora do programa Mapeamento Afetivo, assim como Dona Ivoneide, ao refletir sobre seu próprio território e o quanto ainda descobre sobre ele.
O Mapeamento Afetivo é um programa da Assessoria de Políticas Afirmativas e Articulação Comunitária do Instituto Mirante, promovido por meio do do Núcleo de Pesquisa Afirmativa e Territorial (NUPAT). Em sua terceira edição, realizada de outubro de 2024 a fevereiro de 2025, facilitou encontros, oficinas e trocas entre os moradores do Poço da Draga.
A culminância desse processo aconteceu nos dias 8 e 9 de abril com uma programação especial: no primeiro dia, os mapas afetivos foram apresentados no Centro Cultural Belchior pelos próprios moradores; no segundo, um cortejo perpassou toda a comunidade e curtas-metragens produzidos pelos participantes tomaram a tela do Pavilhão Atlântico, encerrando o ciclo em celebração ao pertencimento.
Mapeamento Afetivo: o Poço que você não vê
Com o objetivo de valorizar as memórias, afetos e vivências da comunidade do Poço da Draga, o Instituto Mirante realizou a terceira edição do programa Mapeamento Afetivo. A iniciativa, conduzida pela Assessoria de Políticas Afirmativas e Articulação Comunitária, é voltada exclusivamente para moradores da região e selecionou 20 participantes para, ao longo de cinco meses, construir uma cartografia sensível do território.
“Uma das formas que a gente fez, por exemplo, de garantir que a comunidade de fato se posicionasse, fosse protagonista, do início ao fim, foi antes de a gente entrar de fato no território, fazer uma série de movimentos de apresentação do programa” explica zwanga adjoa nyack, coordenadora do Núcleo de Pesquisa Afirmativa e Territorial (NUPAT) do Instituto Mirante.
Junto com a coordenação do programa, os bolsistas-pesquisadores construíram uma exposição mostrando a pesquisa cartográfica feita pela comunidade, em busca de visibilidade, reconhecimento do seu território e da sua cultura centenária. Ao todo foram construídos quatro mapas que mostram pontos relevantes para os moradores nas categorias: esportivo, gastronômico, cultural e de resistências.
Na orla de Fortaleza, perto do mar que abraça o território, a exposição “O Poço que você não vê” está em exibição no Centro Cultural Belchior (CCBel) até o dia 26 de abril. O percurso pela mostra é conduzido pelos próprios bolsistas-pesquisadores, moradores da comunidade. “Um dos temas centrais desta edição foi o direito à cidade, que é uma discussão muito importante para o território, tendo em vista as diversas lutas contra demolições, contra tentativas de remanejamento da comunidade que fazem parte desse processo em seus 119 anos”, comenta zwanga.
Para Iana Soares, diretora-executiva do Instituto Mirante, o programa também reafirma o compromisso entre cultura, direito e território. “É emocionante ver os moradores ocupando esse lugar de construção e conversa sobre a própria história. O Poço da Draga carrega quase 120 anos de lutas, afetos e vivências cotidianas que precisam ser reconhecidas como parte da herança cultural da cidade. Mais do que um evento pontual, o Mapeamento Afetivo é uma expressão viva de política pública, de cultura e de memória”, afirmou.
Mapeamento Afetivo: um Poço que fala
Durante o segundo e último dia de festival, 9 de abril, moradores, convidados e admiradores do Poço da Draga se reuniram no Pavilhão Atlântico, no calçadão da comunidade na orla da Praia de Iracema. Ao longo de cinco meses de Mapeamento Afetivo, os bolsistas-pesquisadores tiveram contato com diversas linguagens artísticas, que foram colocadas em prática não só na construção dos mapas como também na produção de filmes que contam histórias marcantes para eles.
Três curtas-metragens foram apresentados ao público, cada um trazendo à tona uma faceta diferente do Poço da Draga. Enquanto “A Casa do Espanto” aborda uma história marcada por mistérios e relatos sombrios, “Viagens do Corvo” explora o sentimento de pertencimento e saudade de um morador que viajou pelo mundo, mas sentiu falta da sua casa. Já “Ponte Afetiva” destaca as memórias de afeto e pertencimento que surgiram ao redor da Ponte Velha, espaço de pesca, mergulho e até de casamentos.
Essas produções, em múltiplas perspectivas, visam desestigmatizar a imagem do Poço da Draga como um lugar de violência, apresentando o bairro através do olhar dos jovens e adultos que participaram do projeto, trazendo um retrato afetivo do território para além das representações usuais da mídia. No Pavilhão Atlântico, em meio a exibição, moradores apontavam para a tela, se reconhecendo nas histórias e nos rostos projetados.
Para além do aspecto artístico, a mostra também reafirma o compromisso político do projeto. “O fato de a comunidade assumir o papel de contar sua história e ocupar espaços culturais é profundamente político”, afirma Dione Silva, assessora de políticas afirmativas e articulação comunitária do Instituto Mirante. “A partir desse movimento, as vozes locais podem passar a definir suas próprias prioridades, desconstruir estigmas que territórios mais vulnerabilizados carregam historicamente, construindo representações mais justas”, completa.
O fortalecimento da autonomia narrativa também tem continuidade: a proposta é que todos os curtas, mapas e registros desta edição componham um acervo digital, tanto no site do Instituto Mirante quanto em um museu virtual, em construção em parceria com o Museu Ferroviário. A ideia é garantir o acesso público e permanente ao que foi produzido e realizar exibições dos curtas em diversos territórios.
O Poço da Draga não é só um lugar: é um organismo vivo, feito de histórias entrelaçadas, de memórias que se recusam a se apagar e de pessoas que resistem todos os dias. O Mapeamento Afetivo do território se consolidou como um dispositivo de escuta, mobilização e ação política.
Ao valorizar as narrativas locais, os saberes tradicionais e os artistas da própria comunidade, o programa fortalece a identidade coletiva e oferece ferramentas para reivindicar direitos. Com afeto, arte e autonomia, o Poço da Draga reafirma que sua história é contada por quem a vive e que seu futuro seguirá sendo moldado por quem resiste.
Texto por: Giovanna Carvalho Moura